Curtailment de energia: desafios e implicações para o setor elétrico
- Mello Pimentel Advocacia
- 19 de jun.
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O setor elétrico brasileiro está em meio a uma transformação profunda, impulsionada pela crescente integração de fontes de energia renovável variável (ERV), como a eólica e a solar. Embora essa transição seja crucial para a sustentabilidade energética do país, ela introduz desafios operacionais complexos, sendo o curtailment de energia um dos mais proeminentes.
Também conhecido como constrained-off, o curtailment consiste na redução ou interrupção deliberada da produção de usinas, mesmo quando estas possuem plena capacidade de geração. Essa medida é determinada pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) com o objetivo primordial de assegurar a segurança e a estabilidade do Sistema Interligado Nacional (SIN).
O fenômeno do curtailment está intrinsecamente ligado à natureza intermitente das ERVs – momentos de produção excessiva (picos de vento ou sol intenso) que podem exceder a capacidade de consumo ou de transmissão da rede – e à sua localização geográfica, frequentemente distante dos grandes centros de carga. As consequências do curtailment são multifacetadas, impactando toda a cadeia do setor elétrico e exigindo uma análise aprofundada de seus aspectos técnicos, regulatórios, jurídicos e econômicos.
O Cenário Regulatório e Jurídico: Complexidade e Controvérsias
A disciplina jurídica do curtailment no Brasil tem como marco regulatório central a Resolução Normativa (REN) nº 1.030/2022 da ANEEL, posteriormente alterada pela REN nº 1.073/2023, que estabeleceu novos critérios para a apuração e compensação por restrições operativas em usinas eolioelétricas e fotovoltaicas, introduzindo limites significativos ao ressarcimento financeiro dos geradores de energia.
A mudança mais sensível foi restringir a indenização, via de regra, apenas a eventos classificados como "indisponibilidade externa" e sujeitá-la à superação de franquias anuais de horas. Essa alteração regulatória acendeu intensos debates sobre sua legalidade, culminando em uma crescente onda de disputas judiciais.
O ponto central da controvérsia reside na interpretação da legislação anterior, Lei 10.848/2004 e Decreto 5.163/2004. As associações de geradores defendem que, sob essa legislação, a compensação financeira por "esquemas de corte de geração" era integral, sem as limitações de motivação que a REN nº 1.030/2022 introduziu. Alegam, portanto, que a ANEEL inovou no ordenamento jurídico, extrapolando sua competência e infringindo a legislação setorial ao impor as novas restrições.
Atualmente, a REN nº 1.030/2022 classifica o constrained-off em três categorias principais, conforme os artigos 14 e 20-B:
• Razão de Indisponibilidade Externa: Refere-se a eventos motivados por indisponibilidades em instalações externas às usinas (ex.: Rede Básica, DITs). Essa é a principal categoria que pode gerar compensação financeira, paga via Encargo de Serviço do Sistema (ESS) e valorada pelo Preço de Liquidação das Diferenças (PLD). O pagamento, contudo, só ocorre após a superação de uma franquia anual (30 horas e 30 minutos para usinas solares e 78 horas para eólicas).
• Razão de Atendimento a Requisitos de Confiabilidade Elétrica: Ocorre quando há restrições motivadas pela necessidade de garantir a confiabilidade de equipamentos em instalações externas, não originadas por indisponibilidades.
• Razão Energética: Acontece quando há impossibilidade de alocação da geração na carga por excesso de oferta.
De acordo com a resolução, as restrições por "Razão de Confiabilidade Elétrica" e "Razão Energética" são, via de regra, consideradas riscos inerentes à atividade do gerador e, portanto, não são passíveis de compensação.
Essa limitação imposta pela ANEEL é o principal objeto de contestação judicial. Em ação promovida pelas associações ABEEÓLICA e ABSOLAR, uma decisão liminar proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) chegou a determinar a compensação integral aos geradores por meio do ESS. No entanto, essa decisão foi posteriormente suspensa por uma decisão monocrática do presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Ministro Herman Benjamin.
Nos autos, a ANEEL defende sua competência para aprovar as regras e os procedimentos de comercialização, contrapondo que o ressarcimento irrestrito oneraria indevidamente os consumidores de energia elétrica, transferindo para eles um risco que é inerente ao negócio de geração. A agência argumenta também que a manutenção de liminares nesse sentido geraria nefasta instabilidade regulatória, perturbando o ambiente institucional do setor elétrico. A interpretação dos geradores, por outro lado, é de que a Lei 10.848/2004, ao prever o pagamento de "encargo para cobertura dos custos dos serviços de sistema", que compreendem os "esquemas de corte de geração", não daria margem para as restrições impostas pela ANEEL.
Depreende-se, portanto, que a questão das compensações por constrained-off é um tema de alta complexidade e grande controvérsia, marcado por diferentes interpretações da legalidade e da competência regulatória. A recente decisão do STJ, que suspendeu a liminar favorável às associações, reafirma a falta de consenso e a recorrência de reviravoltas na interpretação da legislação aplicável, criando um ambiente de instabilidade jurídica que dificulta o planejamento de longo prazo para os agentes do setor.
Impactos em Cascata: As Consequências Econômicas, Contratuais e a Judicialização do Risco
O fenômeno do curtailment desencadeia uma cascata de impactos negativos que se iniciam na operação técnica do sistema, geram perdas financeiras bilionárias e culminam em complexas disputas contratuais e judiciais. No centro da questão está a alocação dos prejuízos e dos riscos de um sistema elétrico em plena transformação.
As perdas financeiras impostas aos geradores são substanciais. Dados compilados pela CCEE, a pedido da ANEEL, indicam que o saldo dos cortes de geração eólica e solar, valorados ao PLD, atingiu a cifra de R$ 1,1 bilhão até novembro de 2024, sendo R$ 904 milhões correspondentes à fonte eólica e R$ 199 milhões à fonte solar. A ABSOLAR estimou um prejuízo de R$ 236,9 milhões para as usinas solares em um período de aproximadamente dois anos. Casos individuais, com prejuízos de dezenas de milhões de reais por desvio negativo da geração, ilustram a gravidade do impacto, com empresas sinalizando riscos de insolvência.
Embora a agência de classificação de risco Fitch Ratings estime um impacto limitado sobre o fluxo de caixa de grandes grupos geradores com portfólios diversificados, ela reconhece a perspectiva de agravamento dos cortes até 2028, quando se espera a entrada em operação de novas linhas de transmissão. Essas perdas decorrem da receita frustrada e da exposição ao volátil Mercado de Curto Prazo (MCP).
As projeções do ONS indicam que, até 2029, poderá ser necessário restringir até 40 GW de geração solar e eólica em determinados horários do dia, caso a expansão da infraestrutura de transmissão e a implementação de soluções de flexibilidade não acompanhem o ritmo de crescimento das fontes renováveis.
O curtailment cria um "risco regulatório de volume", onde há incerteza sobre a quantidade de energia que efetivamente poderá ser gerada e comercializada. Muitos Contratos de Compra e Venda de Energia (PPAs), sobretudo os mais antigos, não preveem uma alocação clara desse risco sistêmico, levando a uma reavaliação das cláusulas contratuais e à busca por alternativas, como contratos denominados em dólar, para viabilizar novos investimentos.
Essa conjuntura levanta um debate central: quem deve arcar com os custos? A ANEEL expressa forte preocupação com o impacto tarifário, argumentando que um ressarcimento irrestrito dos cortes transferiria um risco inerente ao negócio de geração para todos os consumidores, podendo onerar a conta de luz em mais de R$ 1 bilhão via Encargo de Serviços do Sistema (ESS). Em contrapartida, associações como a ABEEÓLICA defendem que o impacto na tarifa seria consideravelmente menor, na ordem de 0,38%.
Por trás de toda essa cadeia de impactos econômicos e jurídicos estão os desafios operacionais. A principal causa do curtailment é um descompasso entre a rápida expansão da capacidade de geração renovável e o lento desenvolvimento da infraestrutura de transmissão, que se mostra insuficiente para escoar toda a energia gerada.
Além disso, a gestão da intermitência natural das fontes eólica e solar pelo ONS para manter a estabilidade do sistema representa outro desafio técnico crucial. Soluções como armazenamento de energia e modernização da transmissão são promissoras, mas sua implementação em larga escala depende de um arcabouço regulatório e de mercado que ainda precisa ser consolidado.
Perspectivas Futuras e o Suporte Jurídico Especializado
Como visto acima, o curtailment não é apenas um problema técnico, mas um desafio sistêmico que exige uma abordagem integrada, envolvendo aspectos regulatórios, econômicos, tecnológicos e de planejamento para garantir a segurança e a sustentabilidade do SIN.
Iniciativas focadas em inovação e eficiência buscam endereçar o problema, mas soluções estruturais de longo prazo são prementes. Novas tecnologias e modelos de negócio, como o Hidrogênio Verde (H2V) – que pode consumir excedentes de energia renovável – e o armazenamento em baterias e a Resposta da Demanda – que podem flexibilizar o consumo – oferecem potencial para mitigar o curtailment, mas requerem regulação e sinais de preço adequados para seu desenvolvimento. Assim como os novos estudos de expansão da transmissão, como um bipolo de corrente contínua no Nordeste, o acompanhamento do sistema por meio de inteligência artificial e machine learning, além da melhoria dos planos de contingência e da gestão dos ativos, são ações que tem como objetivo modernizar o setor e torná-lo mais eficiente diante dos novos desafios energéticos.
O curtailment é, em essência, um sintoma da profunda transformação em curso no setor elétrico, exigindo adaptações significativas no planejamento da expansão, na operação do sistema e no arcabouço regulatório. Superar esse desafio é vital para garantir a continuidade da transição energética sustentável do Brasil, conciliando a expansão das renováveis com a segurança e eficiência do SIN.
A complexidade do tema, a acentuada incerteza jurídica e o volume de disputas em andamento tornam a assessoria jurídica especializada um elemento indispensável para os agentes do setor. Um suporte jurídico qualificado é crucial para gerenciar riscos e alinhar decisões estratégicas, de forma a garantir a viabilidade dos projetos.
Elaborado por: Julio Campos e Renata Rosa
E-mail: energia@mellopimentel.com.br
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