No último dia 30, o Presidente da República assinou a Medida Provisória nº 881/2019 (“MP da Liberdade Econômica” ou “MP 881”), que estabelece regras gerais de livre mercado, análise de impacto regulatório, além de trazer alterações legislativas significativas relacionadas ao direito civil, empresarial, tributário, urbanístico e do trabalho.
Em linhas gerais, a MP da Liberdade Econômica tem como objetivo diminuir a ingerência do Estado nas atividades econômicas, por meio da desburocratização e a simplificação dos processos para exploração de atividade econômica. Neste sentido, o artigo 2º define 3 (três) princípios que deverão ser respeitados no exercício da atividade econômica: (i) presunção de liberdade para trabalhar, produzir e contratar; (ii) presunção de boa-fé do particular; e (iii) a intervenção mínima e excepcional do Estado.
Ademais, a MP da Liberdade Econômica no artigo 3º trouxe direitos essenciais de liberdade econômica, incluindo, mas não se limitando a (i) dispensa de autorizações prévias para atividade de baixo risco (a ser definida por Ato do Poder Executivo, na ausência de legislação estadual, distrital e municipal a respeito); (ii) liberdade para definir o preço de produtos e serviços, de acordo com o comportamento do mercado não regulado (oferta e demanda); (iii) incentivo a produtos e serviços inovadores, que poderão ser oferecidos, testados ou implementados para grupo privado; (iii) respeito aos contratos empresariais privados, estipulando regras de prevalência das condições firmadas entre as partes de um negócio jurídico privado sobre as regras de direito empresarial; e (iv) aceitação do arquivamento de documentos em formato digital, os quais poderão ser restringidos apenas nos casos declarados de emergência ou calamidade pública.
Além de estabelecer direitos e princípios essências de liberdade econômica, a MP 881 alterou importantes normas legais de Direito Privado, como o Código Civil (Lei nº 10.406/02), a Lei de Recuperação e Falência (Lei nº 11.101/05) e a Lei das Sociedade por Ações (Lei nº 6.404/76), as quais, por sua vez, impactam diretamente nas relações contratuais, societárias e nas operações de investimento no mercado de capitais. Trataremos a seguir acerca de tais alterações:
Relações Contratuais
Em linhas gerais, nas relações contratuais privadas a MP 881 busca a redução do controle estatal, dando maior prevalência à autonomia da vontade das partes na alocação de riscos e na definição de critérios de revisão e resolução de contratos. É o que se pode concluir da análise dos artigos 421 e 423 do Código Civil, ambos alterados pela MP 881, bem como dos novos artigos 480-A e 480-B do mesmo diploma legal, os quais estabelecem basicamente que: (i) o Princípio da Autonomia da Vontade previsto no artigo 421 deve prevalecer sobre a aplicação da legislação propriamente dita, como por exemplo, a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada; (ii) a revisão contratual deve ser medida excepcional; e (iii) clausulas dúbias deverão ser interpretadas de forma favorável à parte que não houver participado da elaboração do contrato, salvo relações envolvendo contratos de adesão.
Relações Societárias
No Direito Societário, a grande inovação foi a criação da sociedade limitada unipessoal, o que representa uma grande contribuição para a realidade da maioria das sociedades limitadas, que acabam tendo um sócio concentrando o capital e a gestão, e outro sócio com percentual irrelevante, apenas para cumprir o requisito de pluralidade de sócios previsto no Código Civil.
Além disso, vale destacar a inovação voltada às EIRELIs (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada). Isto porque, a MP 881 passa a reconhecer a independência e a autonomia patrimonial entre a EIRELI e o seu titular, afastando, por consequência, discussões e interpretações dos tribunais acerca do conceito de unicidade patrimonial entre o patrimônio do titular destinado à EIRELI e o seu próprio patrimônio. Desta forma, somente o patrimônio social da empresa poderá responder pelas dívidas existentes.
A MP 881 ainda promove diversas alterações significativas no Código Civil relacionadas às hipóteses de desconsideração de personalidade jurídica, inclusive definindo conceitos de “confusão patrimonial” e de “desvio de finalidade”, criando parâmetros mais objetivos para a sua caracterização. Neste sentido, a referida normativa institui que a mera existência de grupo econômico, sem que reste configurada confusão patrimonial ou desvio de finalidade, não autoriza, por si só, a desconsideração da personalidade jurídica da empresa.
Ademais, no que se refere ao abuso de personalidade jurídica, foi esclarecido, assim como já determinava a jurisprudência majoritária, que a medida deve atingir apenas os bens dos sócios ou administradores que forem beneficiados, direta ou indiretamente, pelo abuso da personalidade jurídica, podendo, neste caso, responder com seus bens próprios. Em outras palavras, a inovação trazida busca evitar que os sócios sem participação no evento de abuso da personalidade jurídica (na maioria dos casos, sócios minoritários) sejam prejudicados.
A Lei de Recuperação e Falência (Lei nº 11.101/05) também foi alterada com a introdução do artigo 82-A, que limita a extensão dos efeitos da falência a sócios de responsabilidade limitada, controladores e administradores, às hipóteses em que se verifique a presença dos requisitos de desconsideração da personalidade jurídica elencados no artigo 50 do Código Civil.
Mercado de Capitais
Além da desburocratização e do fomento a cultura de risco e ao empreendorismo no Brasil, a MP 881 busca trazer maior segurança jurídica e agilidade às operações de captação de recursos. O texto acrescenta novos dispositivos à Lei das Sociedades Anônimas, admitindo que a Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”), por meio de regulamento, flexibilize exigências legais, possibilitando que companhias de pequeno e médio porte, assim definidas pela CVM, tenham acesso ao mercado de capitais. Além disso, a MP da Liberdade Econômica, em casos de constituição de empresas por meio de subscrição pública, bem como em ofertas de ações realizadas através de ofertas públicas de distribuição, dispensa a assinatura de boletins de subscrição ou lista para a subscrição de ações, caso a liquidação ocorra por meio de sistema administrado por entidade administradora de mercados organizados.
Por fim, a MP 881 possibilita que fundos de investimento estabeleçam limitação de responsabilidade para os cotistas (condôminos) ao valor de suas cotas. Ou seja, na hipótese de um fundo ficar negativo, os cotistas não precisarão mais ser chamados a aportar recursos para fazer com que ele retorne ao cenário positivo. Ademais, a MP 881 autoriza a limitação da responsabilidade dos prestadores de serviços fiduciários (administradores, gestores e custodiantes), perante o condômino e entre si, ao cumprimento dos deveres particulares de cada um, sem solidariedade. Cumpre ressaltar que, para os fundos constituídos sem essas previsões, a responsabilidade limitada deverá ser aplicada somente para os fatos posteriores à alteração no regulamento.
Tais modificações visam atender uma demanda há muito pleiteada pela indústria de fundos de investimento, que sofria com decisões desfavoráveis na esfera judicial, além da carência de marco regulatório no Brasil para produtos de investimento.
Conclusão
Não restam dúvidas que essas novas regras demandarão ajustes significativos em inúmeros instrumentos contratuais, estatutos sociais, acordo de acionistas/quotistas, bem como regulamentos de fundos de investimentos.
Não obstante a MP ter entrado em vigor na data da sua publicação, a referida normativa carece de aprovação do Congresso Nacional para transformação em lei. Além disso, é esperado que a MP 881 suscite conflito normativo com outras leis. De todo modo, seguimos atentos à repercussão da MP 881, seja no mercado em geral, como também no Poder Legislativo, bem como nossos profissionais permanecem à disposição para prestar quaisquer esclarecimentos adicionais sobre o tema.
Por Thatiana Nogueira, E-mail: empresarial@mellopimentel.com.br