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14 | Mai

Artigo de André Carvalho, coordenador de nossa área de Contencioso Cível e Resolução de Conflitos, é publicado no site JOTA.

No texto, André fala sobre os impactos da pandemia no setor de seguros no Brasil. Confira:

Artigo de André Carvalho, coordenador de nossa área de Contencioso Cível e Resolução de Conflitos, é publicado no site JOTA.

   A essa altura, já é sabido por todos os racionais que coabitam esse globo que o novo coronavírus se chama Sars-Cov-2 e a doença que ele causa é a Covid-19 (acrônimo para os termos corona-vírus-doença-2019), a qual pode provocar grandes danos ao sistema respiratório e aos pulmões de pacientes infectados. Em casos mais graves da Covid-19, até aqui identificados em maior escala nas pessoas com idade avançada (grupo de risco), a síndrome respiratória pode levar a morte, pois não há ainda um tratamento farmacológico para a doença, conquanto o corpo humano possua mecanismos próprios para lutar contra a infecção.

   Tal crise sanitária mundial tem causado uma mudança drástica no status quo de todas as linhas de negócios existentes, desde os segmentos alimentício e artístico até os setores energético e de construção civil, passando pelas indústrias têxtil e tecnológica, sem perder de vista os serviços educacionais e eventos esportivos, para citar apenas alguns exemplos. Mas qual é o impacto causado pela pandemia no mercado securitário, cuja matéria prima é justamente a álea? Por falar em risco, se estima que as perdas financeiras da B3 devido ao coronavírus foram de até R$ 1 trilhão em apenas duas semanas, sendo impossível precisar ou mesmo prever algo a respeito no setor de seguros.

   Os médicos sanitaristas e os enfermeiros que estão diuturnamente na linha de frente atendendo os pacientes e tentando ao máximo combater a proliferação desse moderno vírus terão suas indenizações securitárias garantidas caso adoeçam ou venham a óbito em virtude da Covid-19, ou tais coberturas serão oportunamente negadas quando a ocorrência do sinistro for avisada sob a justificativa jurídica possível de “agravamento de risco” (art. 768 do Código Civil)?

   Considerando, ainda, que a composição do grupo de risco está em permanente definição, com o ingresso de novas castas à medida em que o novo coronavírus é empiricamente observado no dia a dia, alguma pessoa que esteja acometida dessa nova doença e se enquadre em tal zona de atenção ficará desprotegida do ponto de vista assistencial por seu respectivo plano particular contratado junto à Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, ou sua família desamparada pelo produto adquirido e cadastrado na Superintendência de Seguros Privados – SUSEP caso faleça em razão do Sars-Cov-2, aos eventuais argumentos de “ausência de cobertura contratada” (art. 757 do Código Civil) ou “caso fortuito/força maior” (art. 393 do Código Civil)?

   Escasso – para não correr o risco de afirmar ser mesmo inexistente – tem sido o enfrentamento do assunto relacionado ao presente artigo pela doutrina nacional, dada a natural preocupação até aqui com outros temas igualmente relevantes e que a decifração da fórmula de continuidade também se impõe, como as relações trabalhistas alvo de inúmeras medidas provisórias[1] e outras regulamentações[2], os contratos locatícios que já foram objeto de proposta de lei[3], as dificuldades da indústria com a metodologia de cobrança da energia elétrica que estão na ordem do dia da Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL[4], entre inúmeros outros.

   Pré-compreendido o tema, é indispensável lembrar que a quase totalidade dos contratos de seguros feitos no país – senão todos – contém dispositivo padrão excluindo a cobertura para “eventos relacionados ou ocorridos em consequência de epidemias e pandemias, declaradas por órgão competente”, tal como foi recentemente classificado o novo coronavírus pela OMS, a exemplo dos seguros pessoais, de danos, de viagem etc.

    A respeito do seguro saude e planos de saúde‍, contudo, o Ministério da Saúde e a ANS anunciaram no fim de março a Resolução Normativa nº 453/2020 para o enfrentamento à pandemia, que incluiu o exame de detecção do novo coronavírus no Rol de Cobertura Obrigatória, id est, independente de qualquer previsão contratual anterior ou realidade pessoal do segurado, desde que haja indicação médica.

   Os planos, destarte, devem prestar e cobrir o atendimento necessário para os pacientes com a Covid-19, oferecendo, sem exigir qualquer carência contratual, os esquemas de tratamento atualmente disponíveis. Ações judiciais já foram propostas e liminares deferidas contra diversas operadoras no estado de São Paulo (Processo nº 1029663-70.2020.8.26.0100) e no Distrito Federal e Territórios (Processo nº 0709544-98.2020.8.07.0001), não podendo se perder de vista que todo o custo inerente a esse sacrifício de alinhamento com a nova realidade será repassado em forma de reajuste futuro dos prêmios, haja vista o aumento significativo do número final de atendimentos que terão sido realizados ao se comparar o ano em curso com os anteriores, cabendo aos órgãos de fiscalização o desafio de impedir que o sejam abusivos.

    Na perspectiva dos seguros de pessoas‍, o entendimento da SUSEP permanece no sentido de que a cláusula que exclui expressamente a cobertura por morte do segurado em decorrência de epidemias ou pandemias é válida, podendo, portanto, estar prevista em produtos como o Seguro de Vida e o Seguro Viagem. Um dado importante, porém, é o fato de que tais instrumentos jurídicos estão submetidos às regras consumeristas, de maneira que a imposição de tal excludente de responsabilidade de indenização será objeto de natural questionamento em juízo pelos beneficiários que forem recusados após o procedimento de regulação do sinistro.

    Dito isso, é de se imaginar que muita discussão ainda esteja por vir a respeito da cobertura securitária para sinistros oriundos do coronavírus, merecendo ser lido, a respeito, o raciocínio correto e tarjante do Prof. José Eduardo de Resende, para quem “O juiz solipsista, que desconecta os autos do mundo, que não interage com as partes e com o contexto sociocultural, tem cada vez mais dificuldade de atuar com adequação social.”[5]

    Todos nós, articulistas do direito pós-moderno, estamos sendo convocados para realizar uma mudança de paradigma: a implantação de uma Justiça (um pouco mais) Social, que se acredita seja mais virtuosa do que a atual. Nessa ambiência, o mercado segurador realmente necessita de uma nova mentalidade diante da pandemia ora instaurada, para não correr o risco de colapsar se decidir “bater de frente” e participar do jokenpô que será submeter tais situações à apreciação do nosso nem-tão-neutro-assim Poder Judiciário, que, como é cediço, tem uma forte tendência a declarar a abusividade e nulidade de disposições que colocam o consumidor em situação de desvantagem exagerada, ao invés de ressaltar os deveres de boa-fé e veracidade a que se comprometeu guardar na conclusão e na execução do contrato, afastando ou pelo menos reduzindo possíveis danos (art. 765 do Código Civil).

   Em suma, como normalmente ocorre nos momentos de crise, haverá uma quantidade acentuada de litígios tendo o Sars-Cov-2 como força motriz, e o setor securitário certamente não sairá ileso dessa hecatombe.

 

[1] A esse respeito, vale a leitura das seguintes matérias de Alexandre Leoratti no JOTA: https://www.jota.info/tributos-e-empresas/trabalho/acordos-coletivos-sindicatos-01052020 e https://www.jota.info/tributos-e-empresas/trabalho/mp-antecipacao-feriados-13042020.

[2] Portarias do Ministério da Economia, recomendações técnicas do Ministério Público e decisões do Supremo Tribunal Federal nas Adin’s propostas.

[3] Convém ser lido o artigo do especialista Bruno Prima sobre os efeitos jurídicos do Coronavírus no mercado imobiliário: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/coronavirus-efeitos-juridicos-no-mercado-imobiliario-22032020.

[4] Tema detalhadamente explicado por Rafael Bitencourt no Valor Econômico: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2020/04/29/grande-consumidor-pede-para-flexibilizar-contrato.ghtml.

[5] Comentários à Lei do Processo Eletrônico. São Paulo: LTr, 2010.

 

Por André Carvalho. E-mail: contencioso.civel@mellopimentel.com.br